1.5.12

Ley de Medios: o que é e o porquê da sua da sua urgência


Em dezembro, este blogueiro que vos escreve esteve em Buenos Aires.

Lá, em conversa com os portenhos, nas passagens pelas bancas de jornais e ao ligar a TV, pude verificar que não somente a Ley de Medios está sendo cumprida, como também recebe amplo apoio da população.

A Ley de Medios é uma revolução recente dos hermanos argentinos capitaneada pela presidenta Cristina Kirchner e pela sociedade civil organizada. Tal avanço pode ser melhor compreendido pelo texto que expomos abaixo, do brasileiro Dênis de Moraes, professor da Universidade Federal Fluminense e intelectual sobre a comunicação na América Latina. O texto original, publicado no livro "Ley 26.522 - Hacia un nuevo paradigma em comunicacíon audiovisual" foi livremente traduzido pelo blogueiro que vos escreve e serve para entendermos a força da legislação argentina, sua influência no continente e a situação brasileira.

Saiba mais sobre a Ley de Medios e o livro aqui.

Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador do CNPq e FAPERJ. Professor da UFF, é autor de diversas publicações sobre o assunto.

O olhar a partir da América Latina   
O atual processo de transformações políticas, socioeconômicas e culturais na América Latina tem, na Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina, um dos seus marcos mais significativos. Pela primeira vez na história da região, um país formula, aprova e faz cumprir uma legislação que protege e valoriza a diversidade informativa e cultural, através de um marco regulatório democraticamente discutido e instituído.

Nosso objetivo, no presente artigo, é pôr em evidência a importância da legislação argentina como fonte de inspiração de medida anti-monopólios ao alcance dos demais governos progressistas¹ latino-americanos, em sintonia com a agenda de reivindicações de entidades e movimentos sociais que defendem a comunicação como direito humano.

O que parecia ser um ideal distante, quase impraticável, se converteu em uma certeza que começou a espalhar-se pelo continente. Trata-se de um processo que faz convergir as vontades transformadoras dos Estados com as de amplos segmentos da sociedade civil.

A nova lei trouxe o convencimento de que é viável o conhecido ditado “outra comunicação é possível”, descentralizada e plural, conquistada de forma equilibrada e participativa.

O cenário que se deve mudar
Para explicar a pertinência da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual como instrumento de reestruturação dos setores de informação e cultura em moldes mais plurais, é essencial explicar o difícil cenário midiático da América Latina.

As últimas décadas acentuaram a concentração de mídias latino-americanas em um punhado de megagrupos. Esse modelo de concentração prosperou em meio à convergência dos sistemas, redes e plataformas de produção, transmissão e recepção de dados, imagens e sons. A digitalização estendeu e estende o acesso a tecnologias às partes mais amplas da sociedade – mesmo que de maneira bastante desigual – e impulsiona o crescimento da oferta de produtos e serviços em diferentes plataformas, redes, canais e suportes digitais, sobre controle de grupos nacionais e transnacionais. (...)

A expansão da indústria de mídias na América Latina se vincula historicamente a interesses privados e transnacionais, favorecidos pela fragilidade dos mecanismos de regulação e controle dos fluxos audiovisuais e do capital que cruzam fronteiras por satélites e redes infoeletrônicas. O baixo investimento dos governos em tecnologia e produção cultural, as políticas públicas inconsistentes ou inexistentes e a inércia regulatória afastaram do Estado o protagonismo nas áreas de informação, entretenimento e de telecomunicações.

As desrregulações e privatizações neoliberais durante os anos 1980 e 1990 favoreceram a acumulação da propriedade, das mídias e das tecnologias, permitindo a construção de verdadeiros latifúndios midiáticos que exploram simultaneamente as cadeias de produção, distribuição, circulação e consumo de dados, sons e imagens em busca de dividendos competitivos e lucros acelerados.
Na escalada da globalização, corporações transnacionais como
News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony e Prisa adquiriram ativos de mídia e/ou estabeleceram acordos com grupos multimidiáticos regionais, ampliando exponencialmente suas atuações multisetoriais nos mercados para seus produtos e serviços. O resultado não poderia ser diferente: 85,5% das importações audiovisuais da América Latina provem dos Estados Unidos. Mensalmente, 150 mil horas de filmes, séries e eventos esportivos estadunidenses são apresentados nas emissoras de televisão do nosso continente.

Para os quatro maiores conglomerados latino-americanos – Globo (Brasil), Televisa (México), Cisneros (Venezuela) e Clarín (Argentina) – estas associações representam a possibilidade de realizar negócios e estabelecer alianças com os atores de maior peso do plano internacional, que lhes oferecem lógicas sólidas, financiamento e inserção no mercado.

Globo, Televisa, Cisneros e Clarín detém 60% do faturamento dos mercados e da audiência, distribuídos da seguinte maneira: o Clarín controla 31% da circulação dos jornais, 40,5% da TV aberta e 23,2% da TV paga; a Globo responde por 16,2% da mídia impressa, 56% da TV aberta e 44% da TV fechada; Televisa e TV Azteca formam um duopólio, acumulando 69% e 31,37% da TV aberta, respectivamente. Brasil, México e Argentina reúnem mais da metade dos jornais e emissoras de rádio e televisão e 75% das salas de cinema da região.

Os índices de concentração de mídia do Chile, do Paraguai, da Bolívia e do Uruguai estão entre os maiores do mundo: apenas quatro grupos privados dominam, respectivamente, 95%, 92%, 86% e 85% dos mercados.

Entre os impactos mais graves da concentração midiática na América Latina se pode apontar: as políticas de preço depredatórias destinadas a eliminar ou restringir severamente a concorrência; os controles dos oligopólios sobre a produção, distribuição e difusão de conteúdos; e a acumulação de patentes e direitos de propriedade intelectual por parte dos grupos empresariais. Existe, ainda, um alto risco de unificação das linhas editoriais e predomínio das ambições empresariais passando por cima dos interesses coletivos. As conveniências corporativas se baseiam frequentemente em estratégias de maximização do lucro, sem prestar maior atenção à formação educativa e cultural da audiência e, menos ainda, aos valores e sentidos de pertencimento que constroem as identidades nacionais e regionais.

A Lei que mostrou que “outra comunicação é possível”

Nos últimos anos, governos eleitos com o compromisso de reverter desigualdades e injustiças sociais – agravadas pela submissão de seus antecessores às orientações do neoliberalismo – incluíram a democratização da comunicação entre suas prioridades.

Entre esses governos existe um consenso de que é indispensável a participação do poder público nos sistemas de informação e difusão cultural, a partir do entender que as questões da comunicação dizem respeito aos interesses coletivos. Não podem limitar-se às vontades particulares ou aos cálculos corporativos, pois incluem inúmeros pontos de vista existentes na sociedade.

A ação regulatória do Estado deve zelar pelo equilíbrio entre o que deve ser público e o que deve ser privado, inclusive explicando à população que as empresas de rádio e televisão não são as proprietárias das frequências, mas são apenas concessionárias de um serviço público com prazos estabelecidos por lei, podendo ser renovados ou não.

Um fato encorajador é o fortalecimento destas premissas em políticas públicas de comunicação, incluindo medidas para desfazer os monopólios das empresas de radiodifusão; apoiar mídias alternativas e comunitárias; incentivar a produção audiovisual independente; garantir maior equilíbrio no acesso aos conhecimentos sobre as tecnologias e promover a produção e distribuição de conteúdos regionais e locais sem fins comerciais.

A lei de comunicação audiovisual da Argentina se projeta como um instrumento inovador de regulação, fiscalização, fomento e diversificação das atividades informativas e culturais. As mudanças introduzidas pela lei têm como base entender a comunicação como direito humano e não como mero negócio. Os princípios anti-monopólicos tendem a garantir a pluralidade de vozes e a horizontalidade informativa, fixando um marco regulatório completo pela comunicação midiática, incluindo a convergência digital entre a TV a cabo, a telefonia e a internet em um regime que concede licenças em condições equitativas e não discriminatórias.

São vários os pontos de identificação entre a legislação argentina e os anseios dos organismos e movimentos sociais que reivindicam uma comunicação democrática na América Latina. O primeiro item a destacar é a metodologia adotada pela presidenta Cristina Kirchner para definição do anteprojeto de lei. As consultas públicas aos setores representativos da sociedade civil consagraram um processo democrático de diálogo, consulta e negociação ético-político entre os atores envolvidos. A própria Cristina presidiu reuniões na Casa Rosada com empresários, líderes sindicais e estudantes, proprietários de empresas de comunicação, produtores independentes, reitores de universidades, diretores e professores de faculdades de comunicação, líderes da igreja e de associações de rádios e televisões comunitárias para apresentar ideias e receber sugestões. Sem contar o sem-número de debates sobre a lei promovidos em todo o país pela Coalizão por uma Radiodifusão Democrática (integrada por sindicatos, associações profissionais, universidades, emissoras comunitárias e movimentos de direitos humanos). Esse processo foi considerado pelo La Jornada, um dos principais jornais do México, uma contribuição inovadora da legislação argentina:
“Quem redigiu a nova lei? O governo dos Kirchner, como perversamente repete o poder midiático oligárquico, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e seus braços no continente? Negativo. Além de refletir a complexidade da sociedade argentina, a nova Lei de Mídias foi pensada, fundamentada, discutida e elaborada durante mais de um quarto de século por milhares de anônimos trabalhadores da cultura, intelectuais da comunicação, jornalistas, ONGs, universidades públicas e até algumas privadas”.
Ao aceitar grande parte dos 21 Pontos defendidos pela Coalizão, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual se tornou expressão de uma vontade social mais amplas do que a expressão de uma vontade social mais ampla do que a exclusiva visão do governo que a propôs e depois sancionou. A incorporação das propostas da Coalizão foi reconhecida através de uma carta da presidenta Cristina Kirchner e por entidades que atuam em favor da democratização da comunicação na América Latina como a Associação Latinoamericana de Educação Radiofônica (ALER), a Associação para o Progresso das Comunicações (APC), a Organização Católica Latinoamericana e Caribenha de Comunicação (OCLACC) e a Agência Latinoamericana de Informação (ALAI).

A lei argentina atendeu a uma reivindicação da maioria dos países latinoamericanos, ao definir, em condições equitativas, três tipos de prestadores de serviço de radiodifusão pela concessão pública: de gestão estatal (mídias públicas), de gestão privada com fins lucrativos e de gestão privada sem fins lucrativos (ONGs, entidades sociais e comunitárias, sindicatos, fundações, etc.). Este ponto é decisivo para reverter o predomínio do setor privado comercial no sistema de mídias, pois estabelece equidade em termos de acesso, participação e representatividade entre as três instâncias mencionadas.A pertinência desta e outras determinações da lei foi ressaltada pela Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), que reúne 3.000 associados em 110 países (18 deles na América Latina e no Caribe):

Um dos mais notáveis aspectos é o estabelecimento de diversas e efetivas  medidas para limitar e impedir a concentração indevida de mídias. Entre elas, os limites a quantidade de licenças que pode ter a mesma pessoa ou empresa (em nível nacional e numa mesma área de cobertura) e os limites à propriedade cruzada de mídia, em consonância com as melhores práticas internacionais. Com o objetivo de promover a diversidade de conteúdos nacionais e locais, a nova legislação argentina recorre a antecedentes de países europeus e também americanos ao incluir exigências de produção nacional, local e própria, bem como condições para a formação de redes de emissoras para limitar a centralização e a uniformização da programação de uns poucos grupos empresariais em todo o país. Outro aspecto a destacar é o reconhecimento de três setores: estatal, comercial e sem fins lucrativos, garantindo a participação das entidades não-lucrativas ao preservar para elas 33% do espectro radioelétrico.

A influência imediata da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual pode ser comprovada a partir de propostas semelhantes nos projetos dos governos do Equador e do Uruguai. Em ambos os casos, a revisão da própria radiodifusão se inspira na legislação argentina, tanto como metodologia de consultas à sociedade civil como para formulação dos respectivos anteprojetos.

O projeto de lei aprovado pelo Presidente do Equador, Rafael Correa, e que está sendo discutido pelo Congresso vem a regular os dispositivos anti-monopólicos da Constituição vigente e incorpora pontos considerados prioritários pelo Foro Equatoriano de Comunicação (que congrega sindicatos, associações profissionais, universidades e entidades comunitárias). Os eixos da proposta seguem com nitidez os padrões da legislação argentina.

No Uruguai, a comissão designada pelo Presidente José Mujica definiu os parâmetros dos futuros marcos regulatórios em estreita proximidade com o disposto na Lei de Comunicação Audiovisual: reserva um terço das frequências de rádio e televisão para mídias comunitárias, restringe os monopólios e descentraliza a produção de conteúdos e oferece novas concessões de televisão a fim de permitir o ingresso de operadores comerciais, públicos e comunitários que ampliem a oferta de conteúdos e dos canais de distribuição para a produção audiovisual nacional.

O governo da Venezuela vem modificando os critérios e as prioridades legais para a concessão de licenças de rádio e televisão. O objetivo é reequilibrar a radiodifusão entre os setores estatal, privado e social, tomando como base a lei de Serviços de Comunicação Audiovisual. Segundo o Ministro da Comunicação e Informação, Andrés Izarra, “(...) na Argentina a legislação é mais avançada do que na Venezuela: um terço do espaço radioelétrico vai para as comunidades organizadas e para as organizações não-governamentais”. E conclui:

A lei argentina dá legitimidade ao anseio do uso do espaço radioelétrico por parte das mídias alternativas. Creio que isso vai ser muito positivo para a Argentina porque põe o país em sintonia com os novos tempos. O espaço já não é apenas da oligarquia nem do setor privado, está sendo democratizado. (...) Aparecem novos atores que antes nem sonhavam em estar na comunicação.

Assim mesmo, no Brasil, onde praticamente nada foi feito durante os oitos anos do Governo Luiz Inácio Lula da Silva para modificar a antiquada legislação de comunicação, a lei argentina constitui uma referência indiscutível às mudanças na radiodifusão. Isso pode ser constatado pela similaridade observada em muitas propostas aprovadas na Conferência Nacional de Comunicação de 2009 e até hoje não efetivadas pelo governo federal. No manifesto de defesa da democratização da comunicação, divulgado em 2 de abril de 2011, entidades nacionais (entre elas a Central Única dos Trabalhadores, a Federação Nacional de Jornalistas, a Frente Nacional pela Democratização da Comunicação, o Movimento de Direitos Humanos e AMARC-Brasil) mencionam explicitamente a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual: “Sigamos o exemplo de experiências vitoriosas de mobilização pela reforma do sistema de comunicação na América Latina, como ocorreu na Argentina, onde a sociedade organizada conseguiu ser um ator decisivo na proposta de reformar a legislação”.

Pelo exposto, concluímos que a lei de comunicação audiovisual da Argentina é a prova da viabilidade de um marco regulatório avançado “tanto pelo conteúdo democrático que expressa, como pelo processo de consulta popular que orientou sua elaboração”, como declarou o relator da Comissão de Liberdade de Opinião e Expressão da ONU, Frank La Rue. Além das leis que impeçam práticas monopólicas, a reconfiguração dos sistemas de comunicação na América Latina depende de políticas públicas consistentes, debatidas e formuladas em sintonia com as demandas da sociedade civil – tanto ao se tratar de instrumentos legais como da determinação para levar à prática as medidas de descentralização das mídias. Não basta conter princípios democráticos gerais sem haver tomado a decisão de fazer valer as normas, regulações e os procedimentos que garantam sua aplicação.

Nesse sentido, é conveniente que os governos dos países vizinhos endossem o trabalho que leva adiante a Autoridade Federal de Serviços Comunicação Audiovisual, organismo público criado pela nova legislação argentina com a incumbência de fiscalizar o cumprimento de suas deliberações e fomentar a produção cultural comunitária e independente.

Finalmente, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual expõe, como modelo, a existência inevitável da vontade política dos governantes e do respaldo popular que necessitam para levar adiante essas mudanças, dado as sistemáticas campanhas opositoras das mídias e elites conservadoras. As corporações resistem e resistirão a submeter-se às restrições legais que afetam privilégios conquistados em décadas de cumplicidade com sucessivos governos, o que faz supor que será preciso empenhar cada vez mais força nas batalhas midiáticas, de forma a esclarecer a opinião pública e impedir que prosperem argumentos geralmente falsos sobre as transformações realmente necessárias no horizonte da comunicação.

Os avanços na Argentina o papel regulador e ativo que o Estado precisa desempenhar na vida social, para conseguir, dentro das regras da democracia, legislações anti-monopólicas, universalizar o acesso à informação e tentar conter a avassaladora concentração midiática. Para a América Latina como um todo, significa a oportunidade histórica de analisar e absorver lições da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, na busca de legislações que levem em conta as especificidades de cada país, resguardem e estimulem a diversidade informativa e cultural, a partir do reconhecimento de sua essência para poder aprofundar a democracia.