O shopping JK Iguatemi e a Justiça paulista parecem ter inventado uma super-máquina: identificar, na sorte, quem confirmou presença em evento no Facebook. Fonte: Taba Benedicto/Futura Press |
Verão no Brasil. Os termômetros batem recordes e chega ser insuportável andar pelas ruas em alguns horários. Além do calor, férias. Isso significa que os shoppings brasileiros servem não somente para compras ou para o cinema, mas também para dar um rolezinho e fugir do calor - fazer o tempo passar, mesmo. Só que até para o rolezinho é preciso estar adequado: tem jeito de vestir, de andar e de organizar. Tem cor, também.
Organizadas e divulgados em eventos pelo Facebook, as reuniões de jovens da periferia já é a polêmica da estação. É aquele assunto-chave, que permite compreender melhor o que é o Brasil e sua suposta democracia racial e de classe. Nunca antes na história deste país pobres renderam tanta polêmica ao simplesmente decidirem ir ao shopping.
A professora e pesquisadora de Comunicação da UFRJ, Ivana Bantes, escreveu no final de 2013 sobre a dificuldade da sociedade brasileira em lidar com a ascensão da tal nova classe média. O fio condutor da análise era o clipe recém-lançado da funkeira Valeska Popuzuda e as noções de brega, feio e exagero (entre outras), expostas a partir dele nos milhões de views no You Tube. De maneira brilhante, escancarou a incoerência dos discursos sobre ostentação ouvidos por aí:
Durante décadas as novelas, o noticiário sobre o fabuloso Eike e sua princesa de coleira, a revista "Caras" (com seus ensaios fotográficos em castelos e ilhas, chamando filhos de "herdeiros" e namorados de "eleitos") ensinaram o que é ser "de elite" no Brasil das jacuzzis, da "Garota do Fantástico", dos carros importados e mil marcas e logos. Ensinaram como essa elite estava em outro lugar, patamar e classe, inatingível. Mas "deu ruim" e os pobres, ex-pobres, a classe média, a classe C resolveu (do seu modo) "agregar valor ao camarote", às suas existências, ao puxadinho, à laje etc.
Os shoppings sempre foram locais de autossegregação. É uma opção: frequentar aquele espaço permite uma série de interações e traz muitos simbolismos. Passar pelos corredores iluminados e cheios de vitrines sem ser notado pelos seguranças talvez permita estar inserido naquele mundo de consumo e satisfação imediata. Só que no Brasil da nova classe média, tem mais gente podendo sacar o cartão de crédito e parcelar aquela compra impulsiva. O pobre também quer usar a pólo da Lacoste, se lambuzar com hidratante Victoria Secrets de pera e ter aquela ressaca depois de beber muita Absolut com Red Bull. E isso incomoda. Tem marca que deixou de ser desejada por se tornar popular.
Tem alguém aí incomodado com o morro tendo descido fora do Carnaval?
Tem alguém aí incomodado com o morro tendo descido fora do Carnaval?
Além da classe média ostentação
Há quem relativize ou mesmo torça contra o estouro de consumo puxado por essa parcela da população. Sabemos que desenvolvimento não é somente poder de compra, mas é indiscutível a percepção de que o Brasil mudou, entre outros, em função do aumento da renda e do crédito. Este blogueiro que vos escreve costuma lembrar das (muitas!) mulheres que melhoraram de vida depois de comprarem a máquina de lavar.
É esse país que tem, há dez anos, política séria de aumento do salário-mínimo, mais emprego, mais vagas nas universidades e mais dignidade. E isso incomoda. O lugar do pobre deixou de ser somente o lado de lá do balcão do McDonald's porque hoje o mesmo atendente de lanchonete viaja de avião.
Nas cidades partidas do Brasil, os espaços dos pobres e dos ricos são muito bem definidos e, na possibilidade de qualquer desarranjo, os mais poderosos entram em ação. O shopping JK Iguatemi, em bairro nobre São Paulo conseguiu liminar na Justiça para inibir a realização de um rolezinho, com a possibilidade de aplicação de multa de R$10 mil reais por dia.
Nas cidades partidas do Brasil, os espaços dos pobres e dos ricos são muito bem definidos e, na possibilidade de qualquer desarranjo, os mais poderosos entram em ação. O shopping JK Iguatemi, em bairro nobre São Paulo conseguiu liminar na Justiça para inibir a realização de um rolezinho, com a possibilidade de aplicação de multa de R$10 mil reais por dia.
"Arrastão" em Vitória iniciou debate sobre os direitos à cidade em novembro. Fonte: Murilo Cuzzuol/A Gazeta. |
Em novembro passado, um caso um tanto parecido com os rolezinhos aconteceu em Vitória, Espírito Santo. Segundo o jornal "A Gazeta", uma briga originada em um baile funk nas proximidades do shopping fez com que dezenas de jovens corressem para se abrigar ali. A polícia foi chamada, viaturas chegaram e policiais renderam e revistaram quem tinha cara de funkeiro. Ao olhar a foto com bastante atenção, fica a dúvida: porque os clientes em volta não foram convidados a sentar "confortavelmente" no chão para "averiguação pacífica"?
O mais interessante em todo esse movimento é que de maneira involuntária (será?), esses jovens escancararam o preconceito que costumam sofrer. Em grupos menores, são seguidos pelos seguranças e caso haja qualquer questionamento a resposta é que os seguranças estão apenas trabalhando. Só que quando o número de visitantes inadequados é maior do o aceitável, a situação foge do controle. Mesmo não havendo qualquer registro de roubo e furto, a tendência é criminalizar a presença desses jovens.
Os representantes dos shoppings acabam ficando em situação delicada. Quem paga as contas desses centros comercias não teme ter medo: corre para as lojas que estão baixando as portas com os olhos arregalados e torcem para que o próximo rolé seja proibido, coibido. Até gostariam de ser mais diretos, mas recorrem ao uso de meias palavras nas notas à imprensa e entrevistas - ou pelo menos acham que fazem:
Os representantes dos shoppings acabam ficando em situação delicada. Quem paga as contas desses centros comercias não teme ter medo: corre para as lojas que estão baixando as portas com os olhos arregalados e torcem para que o próximo rolé seja proibido, coibido. Até gostariam de ser mais diretos, mas recorrem ao uso de meias palavras nas notas à imprensa e entrevistas - ou pelo menos acham que fazem:
- Shopping center não é lugar pra que a gente possa ter essas pessoas.(...) O problema é que essa garotada entra em bando, em bandos relativamente grandes (...). A nossa preocupação não é proibir a entrada dessa juventude, desse pessoal que tem que ter oportunidade de entretenimento e projetos culturais. Isso é responsabilidade do estado, da prefeitura - disse em entrevista ao portal Terra o presidente da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping, Nabyl Sayhoun.
É curioso ver alguém que representa os shoppings pedir para que o poder público promova atividades nas ruas logo para os jovens - uma vez que muitas famílias permitem que seus filhos andem com os "amiguinhos" (não em bando, claro) só pela segurança que o empreendimento oferece. Filho de empregada não pode ser protegido pelas paredes dos super-centros de consumo? Lugar de pobre e negro é em outro lugar, deixou claro o senhor Nabyl:
- Em São Paulo tem o Sambódromo, usado para o Carnaval e para uma corrida e fica fechado para praticamente o ano inteiro (...). Shopping center não é lugar para essa manifestação - referindo-se aos sem-terra que também tentaram, sem sucesso, entrar em um shopping paulista. Na visão dele, existe espaço para tudo, inclusive protestos, mas os shoppings não servem para isso.
Abaixo, o registro daquele que talvez tenha sido o primeiro rolezinho do Brasil. O documentário "Hiato", de Vladimir Seixas, mostra a reação dos frequentadores tradicionais, lojistas, seguranças e policiais quando um grupo de sem-teto resolve passar algumas horas no shopping Rio Sul.