Em dezembro, este blogueiro que vos escreve esteve em Buenos Aires.
Lá, em conversa com os portenhos, nas passagens pelas bancas de jornais e ao ligar a TV, pude verificar que não somente a Ley de Medios está sendo cumprida, como também recebe amplo apoio da população.
A Ley de Medios é uma revolução recente dos hermanos argentinos capitaneada pela presidenta Cristina Kirchner e pela sociedade civil organizada. Tal avanço pode ser melhor compreendido pelo texto que expomos abaixo, do brasileiro Dênis de Moraes, professor da Universidade Federal Fluminense e intelectual sobre a comunicação na América Latina. O texto original, publicado no livro "Ley 26.522 - Hacia un nuevo paradigma em comunicacíon audiovisual" foi livremente traduzido pelo blogueiro que vos escreve e serve para entendermos a força da legislação argentina, sua influência no continente e a situação brasileira.
Saiba mais sobre a Ley de Medios e o livro aqui.
Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisador do CNPq e FAPERJ. Professor da UFF, é autor de diversas publicações sobre o assunto.
O olhar a partir da América Latina
O atual processo de
transformações políticas, socioeconômicas e culturais na América Latina tem, na
Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina, um dos seus marcos
mais significativos. Pela primeira vez na história da região, um país formula,
aprova e faz cumprir uma legislação que protege e valoriza a diversidade
informativa e cultural, através de um marco regulatório democraticamente
discutido e instituído.
Nosso objetivo, no presente artigo, é pôr em evidência a
importância da legislação argentina como fonte de inspiração de medida
anti-monopólios ao alcance dos demais governos progressistas¹
latino-americanos, em sintonia com a agenda de reivindicações de entidades e
movimentos sociais que defendem a comunicação como direito humano.
O que parecia ser um ideal distante, quase impraticável,
se converteu em uma certeza que começou a espalhar-se pelo continente. Trata-se
de um processo que faz convergir as vontades transformadoras dos Estados com as
de amplos segmentos da sociedade civil.
A nova lei trouxe o convencimento de que é viável o
conhecido ditado “outra comunicação é possível”, descentralizada e plural,
conquistada de forma equilibrada e participativa.
O
cenário que se deve mudar
Para explicar a
pertinência da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual como instrumento de
reestruturação dos setores de informação e cultura em moldes mais plurais, é
essencial explicar o difícil cenário midiático da América Latina.
As últimas décadas acentuaram a concentração de mídias
latino-americanas em um punhado de megagrupos. Esse modelo de concentração
prosperou em meio à convergência dos sistemas, redes e plataformas de produção,
transmissão e recepção de dados, imagens e sons. A digitalização estendeu e
estende o acesso a tecnologias às partes mais amplas da sociedade – mesmo que
de maneira bastante desigual – e
impulsiona o crescimento da oferta de produtos e serviços em diferentes
plataformas, redes, canais e suportes digitais, sobre controle de grupos
nacionais e transnacionais. (...)
A
expansão da indústria de mídias na América Latina se vincula historicamente a
interesses privados e transnacionais, favorecidos pela fragilidade dos
mecanismos de regulação e controle dos fluxos audiovisuais e do capital que
cruzam fronteiras por satélites e redes infoeletrônicas. O baixo investimento
dos governos em tecnologia e produção cultural, as políticas públicas
inconsistentes ou inexistentes e a inércia regulatória afastaram do Estado o
protagonismo nas áreas de informação, entretenimento e de telecomunicações.
As desrregulações e privatizações neoliberais durante os
anos 1980 e 1990 favoreceram a acumulação da propriedade, das mídias e das
tecnologias, permitindo a construção de verdadeiros latifúndios midiáticos que
exploram simultaneamente as cadeias de produção, distribuição, circulação e
consumo de dados, sons e imagens em busca de dividendos competitivos e lucros
acelerados.
Na escalada da globalização, corporações transnacionais como News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony e Prisa adquiriram ativos de mídia e/ou estabeleceram acordos com grupos multimidiáticos regionais, ampliando exponencialmente suas atuações multisetoriais nos mercados para seus produtos e serviços. O resultado não poderia ser diferente: 85,5% das importações audiovisuais da América Latina provem dos Estados Unidos. Mensalmente, 150 mil horas de filmes, séries e eventos esportivos estadunidenses são apresentados nas emissoras de televisão do nosso continente.
Na escalada da globalização, corporações transnacionais como News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony e Prisa adquiriram ativos de mídia e/ou estabeleceram acordos com grupos multimidiáticos regionais, ampliando exponencialmente suas atuações multisetoriais nos mercados para seus produtos e serviços. O resultado não poderia ser diferente: 85,5% das importações audiovisuais da América Latina provem dos Estados Unidos. Mensalmente, 150 mil horas de filmes, séries e eventos esportivos estadunidenses são apresentados nas emissoras de televisão do nosso continente.
Para os quatro maiores conglomerados latino-americanos – Globo (Brasil), Televisa (México), Cisneros
(Venezuela) e Clarín (Argentina) –
estas associações representam a possibilidade de realizar negócios e
estabelecer alianças com os atores de maior peso do plano internacional, que
lhes oferecem lógicas sólidas, financiamento e inserção no mercado.
Globo, Televisa, Cisneros e Clarín detém 60% do
faturamento dos mercados e da audiência, distribuídos da seguinte maneira: o
Clarín controla 31% da circulação dos jornais, 40,5% da TV aberta e 23,2% da TV
paga; a Globo responde por 16,2% da mídia impressa, 56% da TV aberta e 44% da
TV fechada; Televisa e TV Azteca
formam um duopólio, acumulando 69% e 31,37% da TV aberta, respectivamente.
Brasil, México e Argentina reúnem mais da metade dos jornais e emissoras de
rádio e televisão e 75% das salas de cinema da região.
Os índices de concentração de mídia do Chile, do
Paraguai, da Bolívia e do Uruguai estão entre os maiores do mundo: apenas
quatro grupos privados dominam, respectivamente, 95%, 92%, 86% e 85% dos
mercados.
Entre os impactos mais graves da concentração midiática
na América Latina se pode apontar: as políticas de preço depredatórias
destinadas a eliminar ou restringir severamente a concorrência; os controles
dos oligopólios sobre a produção, distribuição e difusão de conteúdos; e a
acumulação de patentes e direitos de propriedade intelectual por parte dos
grupos empresariais. Existe, ainda, um alto risco de unificação das linhas
editoriais e predomínio das ambições empresariais passando por cima dos
interesses coletivos. As conveniências corporativas se baseiam frequentemente
em estratégias de maximização do lucro, sem prestar maior atenção à formação
educativa e cultural da audiência e, menos ainda, aos valores e sentidos de
pertencimento que constroem as identidades nacionais e regionais.
A
Lei que mostrou que “outra comunicação é possível”
Nos últimos anos, governos eleitos com o compromisso de
reverter desigualdades e injustiças sociais – agravadas pela submissão de seus
antecessores às orientações do neoliberalismo – incluíram a democratização da
comunicação entre suas prioridades.
Entre esses governos existe um consenso de que é
indispensável a participação do poder público nos sistemas de informação e
difusão cultural, a partir do entender que as questões da comunicação dizem
respeito aos interesses coletivos. Não podem limitar-se às vontades
particulares ou aos cálculos corporativos, pois incluem inúmeros pontos de
vista existentes na sociedade.
A ação regulatória do Estado deve zelar pelo equilíbrio
entre o que deve ser público e o que deve ser privado, inclusive explicando à
população que as empresas de rádio e televisão não são as proprietárias das
frequências, mas são apenas concessionárias de um serviço público com prazos estabelecidos
por lei, podendo ser renovados ou não.
Um fato encorajador é o fortalecimento destas premissas em
políticas públicas de comunicação, incluindo medidas para desfazer os
monopólios das empresas de radiodifusão; apoiar mídias alternativas e
comunitárias; incentivar a produção audiovisual independente; garantir maior
equilíbrio no acesso aos conhecimentos sobre as tecnologias e promover a
produção e distribuição de conteúdos regionais e locais sem fins comerciais.
A lei de comunicação audiovisual da Argentina se projeta
como um instrumento inovador de regulação, fiscalização, fomento e
diversificação das atividades informativas e culturais. As mudanças
introduzidas pela lei têm como base entender a comunicação como direito humano
e não como mero negócio. Os princípios anti-monopólicos tendem a garantir a
pluralidade de vozes e a horizontalidade informativa, fixando um marco
regulatório completo pela comunicação midiática, incluindo a convergência
digital entre a TV a cabo, a telefonia e a internet em um regime que concede
licenças em condições equitativas e não discriminatórias.
São vários os pontos de identificação entre a legislação
argentina e os anseios dos organismos e movimentos sociais que reivindicam uma
comunicação democrática na América Latina. O primeiro item a destacar é a
metodologia adotada pela presidenta Cristina Kirchner para definição do
anteprojeto de lei. As consultas públicas aos setores representativos da
sociedade civil consagraram um processo democrático de diálogo, consulta e
negociação ético-político entre os atores envolvidos. A própria Cristina
presidiu reuniões na Casa Rosada com empresários, líderes sindicais e
estudantes, proprietários de empresas de comunicação, produtores independentes,
reitores de universidades, diretores e professores de faculdades de
comunicação, líderes da igreja e de associações de rádios e televisões
comunitárias para apresentar ideias e receber sugestões. Sem contar o
sem-número de debates sobre a lei promovidos em todo o país pela Coalizão por uma Radiodifusão Democrática
(integrada por sindicatos, associações profissionais, universidades, emissoras
comunitárias e movimentos de direitos humanos). Esse processo foi considerado
pelo La Jornada, um dos principais
jornais do México, uma contribuição inovadora da legislação argentina:
“Quem redigiu a nova lei? O governo dos Kirchner, como perversamente repete o poder midiático oligárquico, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e seus braços no continente? Negativo. Além de refletir a complexidade da sociedade argentina, a nova Lei de Mídias foi pensada, fundamentada, discutida e elaborada durante mais de um quarto de século por milhares de anônimos trabalhadores da cultura, intelectuais da comunicação, jornalistas, ONGs, universidades públicas e até algumas privadas”.
Ao aceitar grande parte dos 21 Pontos defendidos pela Coalizão, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual se tornou expressão de uma vontade social mais amplas do que a expressão de uma vontade social mais ampla do que a exclusiva visão do governo que a propôs e depois sancionou. A incorporação das propostas da Coalizão foi reconhecida através de uma carta da presidenta Cristina Kirchner e por entidades que atuam em favor da democratização da comunicação na América Latina como a Associação Latinoamericana de Educação Radiofônica (ALER), a Associação para o Progresso das Comunicações (APC), a Organização Católica Latinoamericana e Caribenha de Comunicação (OCLACC) e a Agência Latinoamericana de Informação (ALAI).
A lei argentina atendeu a uma reivindicação da maioria
dos países latinoamericanos, ao definir, em condições equitativas, três tipos
de prestadores de serviço de radiodifusão pela concessão pública: de gestão
estatal (mídias públicas), de gestão privada com fins lucrativos e de gestão
privada sem fins lucrativos (ONGs, entidades sociais e comunitárias,
sindicatos, fundações, etc.). Este ponto é decisivo para reverter o predomínio
do setor privado comercial no sistema de mídias, pois estabelece equidade em
termos de acesso, participação e representatividade entre as três instâncias
mencionadas.A pertinência desta e outras determinações da lei foi ressaltada
pela Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), que reúne 3.000
associados em 110 países (18 deles na América Latina e no Caribe):
Um dos mais notáveis aspectos é o estabelecimento de diversas e efetivas medidas para limitar e impedir a concentração indevida de mídias. Entre elas, os limites a quantidade de licenças que pode ter a mesma pessoa ou empresa (em nível nacional e numa mesma área de cobertura) e os limites à propriedade cruzada de mídia, em consonância com as melhores práticas internacionais. Com o objetivo de promover a diversidade de conteúdos nacionais e locais, a nova legislação argentina recorre a antecedentes de países europeus e também americanos ao incluir exigências de produção nacional, local e própria, bem como condições para a formação de redes de emissoras para limitar a centralização e a uniformização da programação de uns poucos grupos empresariais em todo o país. Outro aspecto a destacar é o reconhecimento de três setores: estatal, comercial e sem fins lucrativos, garantindo a participação das entidades não-lucrativas ao preservar para elas 33% do espectro radioelétrico.
A influência imediata da Lei de Serviços de Comunicação
Audiovisual pode ser comprovada a partir de propostas semelhantes nos projetos
dos governos do Equador e do Uruguai. Em ambos os casos, a revisão da própria
radiodifusão se inspira na legislação argentina, tanto como metodologia de
consultas à sociedade civil como para formulação dos respectivos anteprojetos.
O projeto de lei aprovado pelo Presidente do Equador,
Rafael Correa, e que está sendo discutido pelo Congresso vem a regular os
dispositivos anti-monopólicos da Constituição vigente e incorpora pontos
considerados prioritários pelo Foro Equatoriano de Comunicação (que congrega
sindicatos, associações profissionais, universidades e entidades comunitárias).
Os eixos da proposta seguem com nitidez os padrões da legislação argentina.
No Uruguai, a comissão designada pelo Presidente José
Mujica definiu os parâmetros dos futuros marcos regulatórios em estreita
proximidade com o disposto na Lei de Comunicação Audiovisual: reserva um terço
das frequências de rádio e televisão para mídias comunitárias, restringe os
monopólios e descentraliza a produção de conteúdos e oferece novas concessões
de televisão a fim de permitir o ingresso de operadores comerciais, públicos e
comunitários que ampliem a oferta de conteúdos e dos canais de distribuição para
a produção audiovisual nacional.
O governo da Venezuela vem modificando os critérios e as
prioridades legais para a concessão de licenças de rádio e televisão. O
objetivo é reequilibrar a radiodifusão entre os setores estatal, privado e
social, tomando como base a lei de Serviços de Comunicação Audiovisual. Segundo
o Ministro da Comunicação e Informação, Andrés Izarra, “(...) na Argentina a
legislação é mais avançada do que na Venezuela: um terço do espaço
radioelétrico vai para as comunidades organizadas e para as organizações
não-governamentais”. E conclui:
A lei argentina dá legitimidade ao anseio do uso do espaço radioelétrico por parte das mídias alternativas. Creio que isso vai ser muito positivo para a Argentina porque põe o país em sintonia com os novos tempos. O espaço já não é apenas da oligarquia nem do setor privado, está sendo democratizado. (...) Aparecem novos atores que antes nem sonhavam em estar na comunicação.
Assim mesmo, no Brasil, onde praticamente nada foi feito
durante os oitos anos do Governo Luiz Inácio Lula da Silva para modificar a
antiquada legislação de comunicação, a lei argentina constitui uma referência
indiscutível às mudanças na radiodifusão. Isso pode ser constatado pela
similaridade observada em muitas propostas aprovadas na Conferência Nacional de
Comunicação de 2009 e até hoje não efetivadas pelo governo federal. No
manifesto de defesa da democratização da comunicação, divulgado em 2 de abril
de 2011, entidades nacionais (entre elas a Central Única dos Trabalhadores, a Federação
Nacional de Jornalistas, a Frente Nacional pela Democratização da Comunicação,
o Movimento de Direitos Humanos e AMARC-Brasil) mencionam explicitamente a Lei
de Serviços de Comunicação Audiovisual: “Sigamos o exemplo de experiências
vitoriosas de mobilização pela reforma do sistema de comunicação na América
Latina, como ocorreu na Argentina, onde a sociedade organizada conseguiu ser um
ator decisivo na proposta de reformar a legislação”.
Pelo exposto, concluímos que a lei de comunicação
audiovisual da Argentina é a prova da viabilidade de um marco regulatório
avançado “tanto pelo conteúdo democrático que expressa, como pelo processo de
consulta popular que orientou sua elaboração”, como declarou o relator da
Comissão de Liberdade de Opinião e Expressão da ONU, Frank La Rue. Além das
leis que impeçam práticas monopólicas, a reconfiguração dos sistemas de
comunicação na América Latina depende de políticas públicas consistentes,
debatidas e formuladas em sintonia com as demandas da sociedade civil – tanto
ao se tratar de instrumentos legais como da determinação para levar à prática
as medidas de descentralização das mídias. Não basta conter princípios
democráticos gerais sem haver tomado a decisão de fazer valer as normas,
regulações e os procedimentos que garantam sua aplicação.
Nesse sentido, é conveniente que os governos dos países
vizinhos endossem o trabalho que leva adiante a Autoridade Federal de Serviços
Comunicação Audiovisual, organismo público criado pela nova legislação
argentina com a incumbência de fiscalizar o cumprimento de suas deliberações e
fomentar a produção cultural comunitária e independente.
Finalmente, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual
expõe, como modelo, a existência inevitável da vontade política dos governantes
e do respaldo popular que necessitam para levar adiante essas mudanças, dado as
sistemáticas campanhas opositoras das mídias e elites conservadoras. As
corporações resistem e resistirão a submeter-se às restrições legais que afetam
privilégios conquistados em décadas de cumplicidade com sucessivos governos, o
que faz supor que será preciso empenhar cada vez mais força nas batalhas
midiáticas, de forma a esclarecer a opinião pública e impedir que prosperem
argumentos geralmente falsos sobre as transformações realmente necessárias no
horizonte da comunicação.
Os avanços na Argentina o papel regulador e ativo que o
Estado precisa desempenhar na vida social, para conseguir, dentro das regras da
democracia, legislações anti-monopólicas, universalizar o acesso à informação e
tentar conter a avassaladora concentração midiática. Para a América Latina como
um todo, significa a oportunidade histórica de analisar e absorver lições da
Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, na busca de legislações que levem
em conta as especificidades de cada país, resguardem e estimulem a diversidade
informativa e cultural, a partir do reconhecimento de sua essência para poder
aprofundar a democracia.
Um comentário:
Artigo que merece ser entregue impresso na mesa da presidente (essa conversa mole de presidenta é cereja de bolo) Dilma. E defendida estrategicamente no Congresso (ou seria Regresso) Nacional.
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